Afro Literatura

Nesta página alguns poemas e trechos de literatura negra AfroBrasileira e Africana:




Prof. Eduardo de Oliveira


Eduardo de Oliveira é um dos mais notáveis homens nascidos neste país.

Não é um elogio. É um fato.


Eduardo de Oliveira é o poeta que Tristão de Ataíde (Alceu de Amoroso Lima), um dos maiores críticos literários da história de nosso país, já na década de 60 destacou como um dos três fundadores mundiais da negritude em literatura: “E a poesia, com um Aimé Cesaire, com um Senghor ou com um Eduardo de Oliveira (….) tem um papel decisivo a representar. Não apenas como instrumento de redenção, mas como voz da própria beleza eterna, inseparável da verdade e do bem, nos desígnios de Deus” (Tristão de Ataíde, 1966, cit. in Zilá Bernd, “Poesia Negra Brasileira”, AGE, Porto Alegre, 1992, pág. 58).








BANZO
(Ao meu irmão Patrice Lumumba)

Eu sei, eu sei que sou um pedaço d'África
pendurado na noite do meu povo.
Trago em meu corpo a marca das chibatas
como rubros degraus feitos de carne
pelos quais as carretas do progresso
iam buscar as brenhas do futuro.
Eu sei, eu sei que sou um pedaço d'África
pendurado na noite do meu povo.
Eu vi nascer mil civilizações
erguidas pelos meus potentes braços;
mil chicotes abriram na minh'alma
um deserto de dor e de descrença
anunciando as tragédias de Lumumba.

Eu sei, eu sei que sou um pedaço d'África
pendurado na noite do meu povo.
Do fundo das senzalas de outros tempos
se levanta o clamor dos meus avós
que tiveram seus sonhos esmagados
sob o peso de cangas e libambos
amando, ao longe, o sol das liberdades.

Eu sei, eu sei que sou um pedaço d'África
pendurado na noite do meu povo.
Eu sinto a mesma angústia, o mesmo banzo
que encheram, tristes, os mares de outros séculos,
por isto é que ainda escuto o som do jongo
que fazia dançar os mil mocambos...
e que ainda hoje percutem nestas plagas.

Eu sei, eu sei que sou um pedaço d'África
pendurado na noite do meu povo.
Balouça sobre mim, sinistro pêndulo
que marca as incertezas do futuro
enquanto que me atiram nas enxergas
aqueles que ainda ontem exploravam
o suor, o sangue nosso e a nossa força.

Eu sei, eu sei que sou um pedaço d'África
pendurado na noite do meu povo.

Eu sei, eu sei que sou um pedaço d'África
pendurado na noite do meu povo.
Eu vi nascer mil civilizações
erguidas pelos meus potentes braços;
mil chicotes abriram na minh'alma
um deserto de dor e de descrença
anunciando as tragédias de Lumumba.

Eu sei, eu sei que sou um pedaço d'África
pendurado na noite do meu povo.
Do fundo das senzalas de outros tempos
se levanta o clamor dos meus avós
que tiveram seus sonhos esmagados
sob o peso de cangas e libambos
amando, ao longe, o sol das liberdades.

Eu sei, eu sei que sou um pedaço d'África
pendurado na noite do meu povo.
Eu sinto a mesma angústia, o mesmo banzo
que encheram, tristes, os mares de outros séculos,
por isto é que ainda escuto o som do jongo
que fazia dançar os mil mocambos...
e que ainda hoje percutem nestas plagas.

Eu sei, eu sei que sou um pedaço d'África
pendurado na noite do meu povo.
Balouça sobre mim, sinistro pêndulo
que marca as incertezas do futuro
enquanto que me atiram nas enxergas
aqueles que ainda ontem exploravam
o suor, o sangue nosso e a nossa força.

Eu sei, eu sei que sou um pedaço d'África
pendurado na noite do meu povo.


LAMENTO NEGRO
(fragmento)

Eu sinto em minhas veias
o grito dos cafezais.
Enxergo em minhas mãos a sombra
dos meus irmãos
vergastados pelo chicote
dos senhores da terra.

Aqueles que carregam o Brasil nas costas
não têm túmulos
nem legendas;
seu sono não é velado,
seu nome ninguém conhece.
Hoje eles seguem a sina
de uma sorte inglória...
de um destino obscuro.
Como as grandes noites
que se debruçam no parapeito
do tempo, para espiar o mundo,
a minha raça vem contemplando
e trabalhando para a ventura alheia,
debruçada na grande noite
do desespero.

Hoje, se o progresso despeja-se
pelos jardins do meu tempo,
a Pátria que agora é minha
chora prantos de café.

A pátria de hoje
É um pedaço de tristeza
e de soluço dos meus avós,
atirada pelas tumbas sem legendas.
Os meus ancestrais
foram vassalos dela...
escravos dela
e se esqueceram de viver.
A grandeza da minha terra
tem seus pés fincados
na alma da minha gente,
na fome da minha gente,
oculta nos presídios,
nos mocambos, nas favelas,
na hemoptise que escreve com sangue
a sorte da minha raça.

Não mais farei versos bonzinhos
para o agrado dos meus novos senhores.
Escuta, "Capitão do Mato":
Daqui por diante
só cantarei o destino da gente
que estua em meu sangue de negro.
Meu poema terá o gosto amargo
do desespero do meu povo.
(...)
Se a turbulência das praças
arrastarem as multidões
amotinadas pela fome
lá estará o meu grito de rebeldia.
Ser negro é sentir a pujança telúrica
das raças infelizes.
Senzalas, ritos, cafezais
são símbolos de ontem
que relembram escravidão.
Favelas, salários, sindicatos,
são emblemas de agora, chicoteando
o rosto de meus irmãos. (...)

[De Banzo, 2a. ed. São Paulo: Obelisco, 1965.]



Hino à Negritude

Eduardo Oliveira

Sob o céu cor de anil das Américas
Hoje se ergue um soberbo perfil
É uma imagem de luz
Que em verdade traduz
A história do negro no Brasil
Este povo em passadas intrépidas
Entre os povos valentes se impôs
Com a fúria dos leões
Rebentando grilhões
Aos tiranos se contrapôs
Ergue a tocha no alto da glória
Quem, herói, nos combates, se fez
Pois que as páginas da História
São galardões aos negros de altivez

Levantado no topo dos séculos
Mil batalhas viris sustentou
Este povo imortal
Que não encontra rival
Na trilha que o amor lhe destinou
Belo e forte na tez cor de ébano
Só lutando se sente feliz
Brasileiro de escol
Luta de sol a sol
Para o bem de nosso país
Ergue a tocha no alto da glória
Quem, herói, nos combates, se fez
Pois que as páginas da História
São galardões aos negros de altivez

Dos Palmares os feitos históricos
São exemplos da eterna lição
Que no solo Tupi
Nos legara Zumbi
Sonhando com a libertação
Sendo filho também da Mãe-África
Arunda dos deuses da paz
No Brasil, este Axé
Que nos mantém de pé
Vem da força dos Orixás
Ergue a tocha no alto da glória
Quem, herói, nos combates, se fez
Pois que as páginas da História
São galardões aos negros de altivez

Que saibamos guardar estes símbolos
De um passado de heróico labor
Todos numa só voz
Bradam nossos avós
Viver é lutar com destemor
Para frente marchemos impávidos
Que a vitória nos há de sorrir
Cidadãs, cidadãos
Somos todos irmãos
Conquistando o melhor por vir
Ergue a tocha no alto da glória
Quem, herói, nos combates, se fez
Pois que as páginas da História
São galardões aos negros de altivez

(bis)





ALDA LARA 

(Alda Ferreira Pires Barreto de Lara Albuquerque. Benguela, Angola, 9.6.1930 - Cambambe, Angola, 30.1.1962). Era casada com o escritor Orlando Albuquerque. Muito nova veio para Lisboa onde concluíu o 7º ano dos liceus. Frequentou as Faculdades de Medicina de Lisboa e Coimbra, licenciando-se por esta última. Em Lisboa esteve ligada a algumas das actividades da Casa dos Estudantes do Império. Declamadora, chamou a atenção para os poetas africanos. Depois da sua morte, a Câmara Municipal de Sá da Bandeira instituiu o Prémio Alda Lara para poesia. Orlando Albuquerque propôs-se editar-lhe postumamente toda a obra e nesse caminho reuniu e publicou já um volume de poesias e um caderno de contos. Colaborou em alguns jornais ou revistas, incluindo a Mensagem (CEI). Figura em: Antologia de poesias angolanas,Nova Lisboa, 1958; amostra de poesia in Estudos Ultramarinos, nº 3, Lisboa1959; Antologia da terra portuguesa - Angola, Lisboa, s/d (196?)1; Poetas angolanos, Lisboa, 1962; Poetas e contistas africanos, S.Paulo, 1963; Mákua 2 - antologia poética, Sá da Bandeira, 1963; Mákua 3, idem; Antologia poética angolana, Sá da Bandeira, 1963; Contos portugueses do ultramar - Angola, 2º vol, Porto, 1969. Livros póstumos: Poemas, Sá da Bandeira, 1966; Tempo de chuva (c), Lobito, 1973



AS BELAS MENINAS PARDAS

As belas meninas pardas
são belas como as demais.
Iguais por serem meninas,
pardas por serem iguais.

Olham com olhos no chão.
Falam com falas macias.
Não são alegres nem tristes.
São apenas como são
todos os dias.

E as belas meninas pardas,
estudam muito, muitos anos.
Só estudam muito. Mais nada.
Que o resto, trás desenganos...

Sabem muito escolarmente.
Sabem pouco humanamente.

Nos passeios de domingo,
andam sempre bem trajadas.
Direitinhas. Aprumadas.
Não conhecem o sabor que tem uma gargalhada
(Parece mal rir na rua!...)

E nunca viram a lua,
debruçada sobre o rio,
às duas da madrugada.

Sabem muito escolarmente.
Sabem pouco humanamente.

E desejam, sobretudo, um casamento decente...

O mais, são histórias perdidas...
Pois que importam outras vidas?...
outras raças?..., outros mundos?...
que importam outras meninas,
felizes, ou desgraçadas?!...

As belas meninas pardas,
dão boas mães de família,
e merecem ser estimadas...


PRELÚDIO
     
Pela estrada desce a noite
Mãe-Negra, desce com ela...

Nem buganvílias vermelhas,
nem vestidinhos de folhos,
nem brincadeiras de guisos,
nas suas mãos apertadas.
Só duas lágrimas grossas,
em duas faces cansadas.

Mãe-Negra tem voz de vento,
voz de silêncio batendo
nas folhas do cajueiro...

Tem voz de noite, descendo,
de mansinho, pela estrada...

Que é feito desses meninos
que gostava de embalar?...

Que é feito desses meninos 
que ela ajudou a criar?...

Quem ouve agora as histórias
que costumava contar?...

Mãe-Negra não sabe nada...
Mas ai de quem sabe tudo,
como eu sei tudo
Mãe-Negra!...

Os teus meninos cresceram,
e esqueceram as histórias
que costumavas contar...

Muitos partiram p'ra longe,
quem sabe se hão-de voltar!...

Só tu ficaste esperando,
mãos cruzadas no regaço,
bem quieta bem calada.

É a tua a voz deste vento,
desta saudade descendo,
de mansinho pela estrada..

Lisboa, 1951 (Poemas, 1966


PRESENÇA AFRICANA

E apesar de tudo,
Ainda sou a mesma!
Livre e esguia,
filha eterna de quanta rebeldia
me sagrou.

Mãe-África!
Mãe forte da floresta e do deserto,
ainda sou,
a Irmã-Mulher
de tudo o que em ti vibra
puro e incerto...

A dos coqueiros,
de cabeleiras verdes
e corpos arrojados
sobre o azul...

A do dendém
Nascendo dos braços das palmeiras...
A do sol bom, mordendo
o chão das Ingombotas...

A das acácias rubras, 
Salpicando de sangue as avenidas,
longas e floridas...

Sim!, ainda sou a mesma.

A do amor transbordando
pelos carregadores do cais
suados e confusos,
pelos bairros imundos e dormentes
(Rua 11!... Rua 11!...)
pelos meninos
de barriga inchada e olhos fundos...

Sem dores nem alegrias,
de tronco nu
e corpo musculoso,
a raça escreve a prumo,
a força destes dias...

E eu  revendo ainda, e sempre, nela,
aquela
Longa história inconsequente...
Minha terra...

Minha, eternamente...

Terra das acácias, dos dongos,
dos cólios baloiçando, mansamente...

Terra!
Ainda sou a mesma.
Ainda sou a que num canto novo
pura e livre,
me levanto,
ao aceno do teu povo!  
                             
 Benguela,1953(Poemas,1966)  


NOITE

Noites africanas langorosas,
esbatidas em luares...,
perdidas em mistérios... Há cantos de tungurúluas pelos ares!...
..........................................................................
Noites africanas endoidadas,
onde o barulhento frenesi das batucadas,
põe tremores nas folhas dos cajueiros...
..........................................................................
Noites africanas tenebrosas...,
povoadas de fantasmas e de medos,
povoadas das histórias de feiticeiros
que as amas-secas pretas,
contavam aos meninos brancos...
E os meninos brancos cresceram,
e  esqueceram
as histórias...

Por isso as noites são tristes...
Endoidadas, tenebrosas, langorosas,
mas tristes... como o rosto gretado,
e sulcado de rugas, das velhas pretas...

como o olhar cansado dos colonos,
como a solidão das terras enormes
mas desabitadas...

É que os meninos brancos...,
esqueceram as histórias,
com que as amas-secas pretas
os adormeciam,
nas longas noites africanas...
Os meninos-brancos... esqueceram!...

1948-Outubro (Poemas1966)


TESTAMENTO

À prostituta mais nova
Do bairro mais velho e escuro,
Deixo os meus brincos, lavrados
Em cristal, límpido e puro...

E àquela virgem esquecida
Rapariga sem ternura,
Sonhamdo algures uma lenda,
Deixo o meu vestido branco,
O meu vestido de noiva,
Todo tecido de renda...

Este meu rosário antigo
Ofereço-o àquele amigo
Que não acredita em Deus...

E os livros, rosários meus
Das contas de outro sofrer,
São para os homens humildes,
Que nunca souberam ler.
Quanto aos meus poemas loucos,
Esses, que são de dor
Sincera e desordenada...

Esses, que são de esperança,
Desesperada mas firme,
Deixo-os a ti, meu amor...

Para que, na paz da hora,
Em que a minha alma venha
Beijar de longe os teus olhos,
Vás por essa noite fora...

Com passos feitos de lua,
Oferecê-los às crianças
Que encontrares em cada rua...



RUMO

É tempo, companheiro!
Caminhemos ...
Longe, a Terra chama por nós, 
e ninguém resiste à voz 
Da Terra ...

Nela,
O mesmo sol ardente nos queimou
a mesma lua triste nos acariciou,
e se tu és negro e eu sou branco,
a mesma Terra nos gerou!

Vamos, companheiro ...
É tempo!

Que o meu coração
se abra à mágoa das tuas mágoas 
e ao prazer dos teus prazeres 
Irmão
Que as minhas mãos brancas se estendam 
para estreitar com amor
as tuas longas mãos negras ... 

E o meu suor 
se junte ao teu suor, 
quando rasgarmos os trilhos 
de um mundo melhor!

Vamos!
que outro oceano nos inflama.. .
Ouves?
É a Terra que nos chama ...
É tempo, companheiro!
Caminhemos ...





Antônio Frederico de Castro Alves

Nasceu na fazenda Cabaceiras,[1] a sete léguas (42 km) da vila de Nossa Senhora da Conceição de "Curralinho", hoje Castro Alves, no estado da Bahia.

Suas poesias mais conhecidas são marcadas pelo combate à escravidão, motivo pelo qual é conhecido como "Poeta dos Escravos". Foi o nosso mais inspirado poeta condoreiro.



Navio Negreiro 
(Tragédia no mar)

'Stamos em pleno mar... Doudo no espaço
Brinca o luar — dourada borboleta;
E as vagas após ele correm... cansam
Como turba de infantes inquieta.


'Stamos em pleno mar... Do firmamento
Os astros saltam como espumas de ouro...
O mar em troca acende as ardentias,
— Constelações do líquido tesouro...

'Stamos em pleno mar... Dois infinitos
Ali se estreitam num abraço insano,
Azuis, dourados, plácidos, sublimes...
Qual dos dous é o céu? qual o oceano?...

'Stamos em pleno mar. . . Abrindo as velas
Ao quente arfar das virações marinhas,
Veleiro brigue corre à flor dos mares,
Como roçam na vaga as andorinhas...

Donde vem? onde vai? Das naus errantes
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?
Neste saara os corcéis o pó levantam,
Galopam, voam, mas não deixam traço.

Bem feliz quem ali pode nest'hora
Sentir deste painel a majestade!
Embaixo — o mar em cima — o firmamento...
E no mar e no céu — a imensidade!

Oh! que doce harmonia traz-me a brisa!
Que música suave ao longe soa!
Meu Deus! como é sublime um canto ardente
Pelas vagas sem fim boiando à toa!

Homens do mar! ó rudes marinheiros,
Tostados pelo sol dos quatro mundos!
Crianças que a procela acalentara
No berço destes pélagos profundos!

Esperai! esperai! deixai que eu beba
Esta selvagem, livre poesia,
Orquestra — é o mar, que ruge pela proa,
E o vento, que nas cordas assobia...
..........................................................


Por que foges assim, barco ligeiro?
Por que foges do pávido poeta?
Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira
Que semelha no mar — doudo cometa!

Albatroz! Albatroz! águia do oceano,
Tu que dormes das nuvens entre as gazas,
Sacode as penas, Leviathan do espaço,
Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas.




Trecho da Obra
O POVO BRASILEIRO
de Darcy Ribeiro




OS AFRO-BRASILEIROS

Os negros do Brasil foram trazidos principalmente da costa ocidental africana.
Arthur Ramos ( 1940, 1942, 1946 ), prosseguindo os estudos de Nina Rodrigues (1939, 1945), distingue, quanto aos tipos culturais, três grandes grupos. O primeiro, das culturas sudanesas, é representado, principalmente, pelos grupos Yoruba - chamados nagô -, pelos Dahomey – designados geralmente como gegê - e pelos Fanti-Ashanti – conhecidos como mircas -, além de muitos representantes de grupos menores da Gâmbia, Serra Leoa, Costa da Malagueta e Costa do Marfim. O segundo grupo trouxe ao Brasil culturas africanas islamizadas, principalmente os Peuhl, os Mandinga e os Haussa, do norte da Nigéria, identificados na Bahia como negros malé e no Rio de Janeiro como negros alufá. O terceiro grupo cultural africano era integrado por tribos Bantu, do grupo congo- angolês, provenientes da área hoje compreendida pela Angola e a "Contra Costa", que corresponde ao atual território de Moçambique.

A contribuição cultural do negro foi pouco relevante na formação daquela protocélula original da cultura brasileira. Aliciado para incrementar a produção açucareira, comporia o contingente fundamental da mão-de-obra. Apesar do seu papel como agente cultural ter sido mais passivo que ativo, o negro teve uma importância crucial, tanto por sua presença como a massa trabalhadora que produziu quase tudo que aqui se fez, como por sua introdução sorrateira mas tenaz e continuada, que remarcou o amálgama racial e cultural brasileiro com suas cores mais fortes.

Tal como ocorreu aos brancos, vindos mais tarde a integrar-se na etnia brasileira, os negros, encontrando já constituída aquela protocélula luso-tupi, tiveram de nela aprender a viver, plantando e cozinhando os alimentos da terra, chamando as coisas e os espíritos pelos nomes tupis incorporados ao português, fumando longos cigarros de tabaco e bebendo cauim.

Os negros do Brasil, trazidos principalmente da costa ocidental da África, foram capturados meio ao acaso nas centenas de povos tribais que falavam dialetos e línguas não inteligíveis uns aos outros. A África era, então, como ainda hoje o é, em larga medida, uma imensa Babel de línguas. Embora mais homogêneos no plano da cultura, os africanos variavam também largamente nessa esfera. Tudo isso fazia com que a uniformidade racial não correspondesse a uma unidade lingüístico-cultural, que ensejasse uma unificação, quando os negros se encontraram submetidos todos à escravidão. A própria religião, que hoje, após ser trabalhada por gerações e gerações, constituiu-se uma expressão da consciência negra, em lugar de unificá-los, então, os desunia. Foi até utilizada como fator de discórdia, segundo con, fessa o conde dos Arcos.

A diversidade lingüística e cultural dos contingentes negros introduzidos no Brasil, somada a essas hostilidades recíprocas que eles traziam da África e à política de evitar a concentração de escravos oriundos de uma mesma etnia, nas mesmas propriedades, e até nos mesmos navios negreiros, impediu a formação de núcleos solidários que retivessem o patrimônio cultural africano.

Encontrando-se dispersos na terra nova, ao lado de outros escravos, seus iguais na cor e na condição servil, mas diferentes na língua, na identificação tribal e freqüentemente hostis pelos referidos conflitos de origem, os negros foram compelidos a incorporar-se passivamente no universo cultural da nova sociedade.

Dão, apesar de circunstâncias tão adversas, um passo adiante dos outros povoadores ao aprender o português com que os capatazes lhes gritavam e que, mais tarde, utilizariam para comunicar-se entre si. Acabaram conseguindo aportuguesar o Brasil, além de influenciar de múltiplas maneiras as áreas culturais onde mais se concentraram, que foram o nordeste açucareiro e as zonas de mineração do centro do país. Hoje, aquelas populações guardam uma flagrante feição africana na cor da pele, nos grossos lábios e nos narigões fornidos, bem como em cadências e ritmos e nos sentimentos especiais de cor e de gosto.
Nos dois casos, o engenho e a mina, os negros escravos se viram incorporados compulsoriamente a comunidades atípicas, porque não estavam destinados a atender às necessidades de sua população, mas sim aos desígnios venais do senhor. Nelas, à medida que eram desgastados para produzir o que não consumiam, iam sendo radicalmente deculturados pela erradicação de sua cultura africana.

Simultaneamente, vão se aculturando nos mo dos brasileiros de ser e de fazer, tal como eles eram representados no universo cultural simplificado dos engenhos e das minas. Têm acesso, desse modo, a um corpo de elementos adaptativos, associativos e ideológicos oriundo daquela protocélula étnica tupi que se consentiu sobreviver nas empresas, para o exercício de funções extraprodutivas.

Só através de um esforço ingente e continuado, o negro escravo iria reconstituindo suas virtualidades de ser cultural pelo convívio de africanos de diversas procedências com a gente da terra, previamente incorporada à proto-etnia brasileira, que o iniciaria num corpo de novas compreensões mais amplo e mais satisfatório. O negro transita, assim, da condição de boçal – preso ainda à cultura autóctone e só capaz de estabelecer uma comunicação primária com os demais integrantes do novo contorno social - à condição de ladino -já mais integrado na nova sociedade e na nova cultura.

Esse negro boçal, que ainda não falava o português ou só falava um português muito trôpego, era entretanto perfeitamente capaz de desempenhar as tarefas mais pesadas e ordinárias na divisão de trabalho do engenho ou da mina.

Concentrando-se em grandes massas nas áreas de atividade mercantil mais intensa, onde o índio escasseava cada vez mais, o negro exerceria um papel decisivo na formação da sociedade local. Seria, por excelência, o agente de europeização que difundiria a língua do colonizador e que ensinaria aos escravos recém-chegados as técnicas de trabalho, as normas e valores próprios da subcultura a que se via incorporado. Consegue, ainda assim, exercer influência, seja emprestando dengues ao falar lusitano, seja impregnando todo o seu contexto com o pouco que pôde preservar da herança cultural africana. Como esta não podia expressar-se nas formas de adaptação - por diferir, consideravelmente, no plano ecológico e tecnológico, dos modos de prover a subsistência na África -, nem tampouco nos modos de associação - por estarem rigidamente prescritos pela estrutura da colônia como sociedade estratificada, a que se incorporava na condição de escravo -, sobreviveria principalmente no plano ideológico, porque ele era mais recôndito e próprio. Quer dizer, nas crenças religiosas e nas práticas mágicas, a que o negro se apegava no esforço ingente por consolar-se do seu destino e para controlar as ameaças do mundo azaroso em que submergira.
Junto com esses valores espirituais, os negros retêm, no mais recôndito de si,.tanto reminiscências rítmicas e musicais, como saberes e gostos culinários.

Essa parca herança africana - meio cultural e meio racial -, associada às crenças indígenas, emprestaria entretanto à cultura brasileira, no plano ideológico, uma singular fisionomia cultural. Nessa esfera é que se destaca, por exemplo, um catolicismo popular muito mais discrepante que qualquer das heresias cristãs tão perseguidas em Portugal.
Conscritos nos guetos de escravidão é que os negros brasileiros participam e fazem o Brasil participar da civilização de seu tempo. Não nas formas que a chamada civilização ocidental assume nos núcleos cêntricos, mas com as deformações de uma cultura espúria, que servia a uma sociedade subalterna. Por mais que se forçasse um modelo ideal de europeidade, jamais se alcançou, nem mesmo se aproximou dele, porque pela natureza das coisas, ele é inaplicável para feitorias ultramarinas destinadas a produzir gêneros exóticos de exportação e de valores pecuniários aqui auridos. Seu ser normal era aquela anomalia de uma comunidade cativa, que nem existia para si nem se regia por uma lei interna do desenvolvimento de suas potencialidades, uma vez que só vivia para outros e era dirigida por vontades e motivações externas, que o queriam degradar moralmente e desgastar fisicamente para usar seus membros homens como bestas de carga e as mulheres como fêmeas animais. As diferenças entre os dois modelos, não sendo degradações nem enfermidades, não podiam jamais ser reestruturadas ou curadas. De fato, era o Brasil que se construía a si mesmo como corresponde à sua base ecológica, o projeto colonial, a monocultura e o escravismo do que resulta uma sociedade totalmente nova.

A empresa escravista, fundada na apropriação de seres humanos através da violência mais crua e da coerção permanente, exercida através dos castigos mais atrozes, atua como uma mó desumanizadora e deculturadora de eficácia incomparável. Submetido a essa compressão, qualquer povo é desapropriado de si, deixando de ser ele próprio, primeiro, para ser ninguém ao ver-se reduzido a uma condição de bem semovente, como um animal de carga; depois, para ser outro, quando transfigurado etnicamente na linha consentida pelo senhor, que é a mais compatível com a preservação dos seus interesses.
O espantoso é que os índios como os pretos, postos nesse engenho deculturativo, consigam permanecer humanos. Só o conseguem, porém, mediante um esforço inaudito de auto-reconstrução no fluxo do seu processo de desfazimento. Não têm outra saída, entretanto, uma vez que da condição de escravo só se sai pela porta da morte ou da fuga. Portas estreitas, pelas quais, entretanto, muitos índios e muitos negros saíram; seja pela fuga voluntarista do suicídio, que era muito freqüente, ou da fuga, mais freqüente ainda, que era tão temerária porque quase sempre resultava mortal. Todo negro alentava no peito uma ilusão de fuga, era suficientemente audaz para, tendo uma oportunidade, fugir, sendo por isso supervigiado durante seus sete a dez anos de vida ativa no trabalho. Seu destino era morrer de estafa, que era sua morte natural. Uma vez desgastado, podia até ser alforriado por imprestável, para que o senhor não tivesse que alimentar um negro inútil.

Uma morte prematura numa tentativa de fuga era melhor, quem sabe, que a vida do escravo trazido de tão longe para cair no inferno da existência mais penosa. Sentindo que é violentado, sabendo que é explorado, ele resiste como lhe é possível. "Deixam de trabalhar bem se não forem convenientemente espancados", diz um observador alemão, "e se desprezássemos a primeira iniqüidade a que os sujeitou, isto é, sua introdução e submissão forçada, devíamos de considerar em grande parte os castigos que lhes impõem os seus senhores" (Davatz 1941:62-3 ). Aí está a racionalidade do escravismo, tão oposta à condição humana que uma vez instituído só se mantém através de uma vigilância perpétua e da violência atroz da punição preventiva.

Apresado aos quinze anos em sua terra, como se fosse uma caça apanhada numa armadilha, ele era arrastado pelo pombeiro - mercador africano de escravos - para a praia, onde seria resgatado em troca de tabaco, aguardente e bugigangas. Dali partiam em comboios, pescoço atado a pescoço com outros negros, numa corda puxada até o porto e o tumbeiro. 

Metido no navio, era deitado no meio de cem outros para ocupar, por meios e meio, o exíguo espaço do seu tamanho, mal comendo, mal cagando ali mesmo, no meio da fedentina mais hedionda. Escapando vivo à travessia, caía no outro mercado, no lado de cá, onde era examinado como um cavalo magro. Avaliado pelos dentes, pela grossura dos tornozelos e dos punhos, era arrematado. Outro comboio, agora de correntes, o levava à terra adentro, ao senhor das minas ou dos açúcares, para viver o destino que lhe havia prescrito a civilização: trabalhar dezoito horas por dia, todos os dias do ano. No domingo, podia cultivar uma rocinha, devorar faminto a parca e porca ração de bicho com que restaurava sua capacidade de trabalhar no dia seguinte até a exaustão.

Sem amor de ninguém, sem familia, sem sexo que não fosse a masturbação, sem nenhuma identificação possível com ninguém - seu capataz podia ser um negro, seus companheiros de infortúnio, inimigos -, maltrapilho e sujo, feio e fedido, perebento e enfermo, sem qualquer gozo ou orgulho do corpo, vivia a sua rotina. Esta era sofrer todo o dia o castigo diário das chicotadas soltas, para trabalhar atento e tenso. Semanalmente vinha um castigo preventivo, pedagógico, para não pensar em fuga, e, quando chamava atenção, recaía sobre ele um castigo exemplar, na forma de mutilações de dedos, do furo de seios, de queimaduras com tição, de ter todos os dentes quebrados criteriosamente, ou dos açoites no pelourinho, sob trezentas chicotadas de uma vez, para matar, ou cinqüenta chicotadas diárias, para sobreviver. Se fugia e era apanhado, podia ser marcado com ferro em brasa, tendo um tendão cortado, viver peado com uma bola de ferro, ser queimado vivo, em dias de agonia, na boca da fornalha ou, de uma vez só, jogado nela para arder como um graveto oleoso.

Nenhum povo que passasse por isso como sua rotina de vida, através de séculos, sairia dela sem ficar marcado indelevelmente. Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos. Descendentes de escravos e de senhores de escravos seremos sempre servos da malignidade destilada e instalada em nós, tanto pelo sentimento da dor intencionalmente produzida para doer mais, quanto pelo exercício da brutalidade sobre homens, sobre mulheres, sobre crianças convertidas em pasto de nossa fúria.

A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista. Ela é que incandesce, ainda hoje, em tanta autoridade brasileira predisposta a torturar, seviciar e machucar os pobres que lhes caem às mãos. Ela, porém, provocando crescente indignação nos dará forças, amanhã, para conter os possessos e criar aqui uma sociedade solidária.

OS NEOBRASILEIROS

Graças à auto-identificação própria e nova que iam assumindo e, também, ao acesso a múltiplas inovações socioculturais e tecnológicas, as comunidades neobrasileiras nascentes se capa citaram a dar dois passos evolutivos. Primeiro, o de abranger maior número de membros do que as aldeias indígenas, liberando parcelas crescentes deles das tarefas de subsistência para o exercício das funções especializadas. Segundo, incorporar todos eles numa só identidade étnica, estruturada como um sistema socioeconômico integrado na economia mundial.

Apesar de terem um alto grau de auto-suficiência, dependiam de certos artigos importados, sobretudo de instrumentos de metal, sal, pólvora e outros mais, que não podiam produzir. Já não viviam, portanto, como indígenas encerrados sobre si mesmos e voltados fundamentalmente ao provimento da subsistência. Ao contrário, mantinham vínculos mercantis externos para prover-se dos referidos bens em troca do seu principal artigo de exportação, que fora, inicialmente, o pau-de-tinta, depois, o índio apresado como escravo e, afmal, a produção de alguma mercadoria de exportação. Produzir essa mercadoria passou a ser sua razão de viver.

Por longo tempo, contudo, a população básica desses núcleos coloniais neobrasileiros exibiria uma aparência muito mais indígena que negra e européia, pelo modo como moravam, pelo que comiam, por sua visão do mundo e pelo idioma que falavam. Tal indianidade era, sem dúvida, mais aparente que real, porque o apelo às formas indígenas de adaptação à natureza, a sobrevivência das antigas tradições, o próprio uso da língua indígena, estavam postos, agora, a serviço de uma entidade nova, muito mais capaz de crescer e expandir-se. 

Conforme assinalamos, enquanto o aumento da população indígena só conduzia à partição das tribos em microetnias tendentes a diferenciar-se, independentizar-se e dispersar-se, as novas comunidades constituíam unidades operativas capazes de crescer conjugadamente na forma de uma macroetnia.

O idioma tupi foi a língua materna de uso corrente desses neobrasileiros até meados do século XVIII. De fato, o tupi, inicialmente, se expandiu mais que o português como a língua da civilização (sobre a formação e a difusão da língua geral ver Cortesão 1958 e Holanda 1945 ). Com efeito, a língua geral, o nheengatu, que surge no século XVI do esforço de falar o tupi com boca de português, se difunde rapidamente como a fala principal tanto dos núcleos neobrasileiros como dos núcleos missionários.

Cumpre, primeiro, a função de língua de comunicação dos europeus com os Tupinambá de toda a costa brasileira, logo após o descobrimento. Depois, a de língua e dispersar-se, as novas comunidades constituíam unidades operativas capazes de crescer conjugadamente na forma de uma macroetnia.

Cumpre, primeiro, a função de língua de comunicação dos europeus com os Tupinambá de toda a costa brasileira, logo após o descobrimento. Depois, a de língua materna dos mamelucos da Bahia, Pernambuco, Maranhão e São Paulo. Mais tarde, se ex-pande juntamente com a população, como língua corrente tanto das reduções e vilas que os missionários e os colonos fundaram no vale amazônico, como dos núcleos gaúchos que se fixaram no extremo sul, frente aos povoadores espanhóis. É de notar que, sendo a língua geral uma variante muito pouco diferenciada do guarani falado naqueles séculos, tanto em território paraguaio onde se converte em língua materna como no que viria a ser a Argentina e o Uruguai de hoje, estamos, como se vê,, frente a uma enorme área lingüística tupi-guarani. Seguramente, a mais ampla das áreas lingüísticas americanas.

Assim era já antes da chegada do europeu, uma vez que tribos do tronco tupi ocupavam quase todo o litoral atlântico do Brasil atual e subiam, terra adentro, pelo sistema fluvial do Prata, ocupando vastas regiões do vale do Amazonas. Esta área lingüística corresponde, grosso modo, aos territórios atuais do Brasil, do Paraguai e do Uruguai. Essa é a que os neobrasileiros fizeram sua, falando tupi para se comunicar com as tribos que ali viviam e a que eles sucederiam ecologicamente no mesmo espaço.

A substituição da língua geral pela portuguesa como língua materna dos brasileiros só se completaria no curso do século XVIII. Mas desde antes vinha se efetuando, de maneira mais rápida e radical onde a economia era mais dinâmica e, em conseqüência, era maior a concentração de escravos negros e de povoadores portugueses; e, mais lentamente, nas áreas economicamente marginais, como a Amazônia e o extremo sul.

No rio Negro, até o século xx, se falava a língua geral, apesar de que os Tupi jamais tivessem chegado ao norte do Amazonas. Introduzido como língua civilizadora pelos jesuítas, o nheengatu permaneceu, depois da expulsão deles, como a fala comum da população brasileira local e subsistiu como língua predominante até 1940 (Censo Nacional 1940 ).
No Sul, a presença de uma vasta área guaranítica na bacia do Prata se comprova, de um lado, pela toponímia predominantemente guarani das zonas de antiga ocupação do Uruguai e da Argentina, e, de outro lado, pela presença atual do guarani como a língua vernácula do Paraguai.

O mesmo processo de sucessão ocorre com a tecnologia produtiva. Inicialmente quase só indígena, ela vai sendo substituída, com o passar dos séculos, por técnicas européias, tanto mais rapidamente quanto mais completamente se integra cada zona na economia mercantil e se moderniza. Ainda assim, ao longo dos séculos, a tecnologia do Brasil rústico foi e continua sendo basicamente indígena, no que diz respeito à subsistência - baseada no cultivo e no preparo da mandioca, do milho, da abóbora e das batatas, e de muitas outras plantas - bem como às técnicas indígenas de caça e de pesca.

Essa base tecnológica indígena, desde o primeiro momento, vem sendo enriquecida por contribuições européias que, pouco a pouco, aumentaram a sua produtividade.
Tal era o caso dos instrumentos de ferro - machados, facas, facões, foices, enxadas, anzóis -; das armas de fogo para a caça e para a guerra; de aparelhos mecânicos, como a prensa, que às vezes substituiu o tipiti indígena trançado de palha; do monjolo, grande morteiro de água com que se pila o milho; das moendas de espremer cana; da roda hidráulica, do carro de boi, da roda do oleiro, do tear composto, do descaroçador de algodão e, ainda, dos tachos e panelas de metal, que substituíam o torrador de cerâmica para o tratamento da farinha de mandioca; e, por fim, dos animais do mésticos - galinhas, porcos, bois, cavalos -, utilizados para a alimentação, caça, transporte e tração.

As casas dos novos núcleos se reduzem enormemente de dimensão em relação às malocas indígenas porque, em lugar de acolherem famílias extensas, abrigando centenas de pessoas, agora acolhem famílias menores ou a escravaria. Melhora, porém, a técnica de edificação com o emprego da taipa e do adobe cru na construção das casas mais humildes, e de tijolos, pedras, cal e telhas para as senhoriais.

Simultaneamente, as residências da gente mais rica se engalanam com um mobiliário mais elaborado, deslocando as redes de dormir para dar lugar a catres; as cestas trançadas, substituídas por canastras de couro ou arcas de madeira; a que, mais tarde, se somariam mesas, bancos, armários e oratórios. A tudo isso se acrescentam, logo, as técnicas de preparo e de uso do sal e do sabão, da aguardente, das lâmpadas de azeite, dos couros curtidos, de novos remédios, de sandálias e de chapéus.

Os principais elementos aglutinadores dos novos núcleos são um comando administrativo e político, representado localmente pelas autoridades seculares e eclesiásticas, e uma gerência socioeconômica a cargo do empresariado de produtores e comerciantes. A unidade de comando dessa estrutura do poder permitiu às comunidades nascentes crescerem e se diferenciarem, cada vez mais, num componente rural e outro urbano. O primeiro assentado principalmente nas fazendas, sob o mando de seus proprietários, mas trabalhadas por escravos negros ocupados na produção mercantil e por gente nascida na terra; estes últimos devotados a funções administrativas e de defesa e à produção de alimentos. O segundo era constituído pela parcela urbanizada da população, regida por capitães e prelados e ativado por trabalhadores braçais, artesãos, comerciantes, funcionários e sacerdotes. Sua função era administrar o empreendimento colonial, conformá-lo como possessão portuguesa, plasmá-lo dentro dos cânones da cultura lusitana e totalmente fiel à Igreja católica apostólica e romana.

No conjunto dessa população colonial, destaca-se prontamente uma camada superior, desligada das tarefas produtivas, formada por três setores letrados, participantes de certos conteúdos eruditos da cultura lusitana. Tais eram: uma burocracia colonial comandada por Lisboa, que exercia as funções de governo civil e militar; outra religiosa, que cumpria o papel de aparato de indoutrinação e catequese dos índios e de controle ideológico da população, sob a regência de Roma; e, finalmente, uma terceira, que viabilizava a economia de exportação, representada por agentes de casas financeiras e de armadores, atenta aos interesses e às ordens dos portos europeus importadores de artigos tropicais. Esses três setores, mais seus corpos de pessoal auxiliar, instalados nos portos, constituíram o comando da estrutura global. Compunha um componente urbano de montante tão ponderável quanto o das sociedades européias da época; formadas, elas também, por populações majoritariamente rurais. Era, de fato, uma subestrutura da rede metropolitana européia, menos independente que seus demais componentes, porque estava intermediada por Lisboa.


Fonte: http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/darcy-ribeiro/o-povo-brasileiro-4.php#ixzz205NV83jU

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LAMENTO NEGRO (fragmento)


Eu sinto em minhas veias o grito dos cafezais.
Enxergo em minhas mãos a sombra dos meus irmãos
vergastados pelo chicote dos senhores da terra.

Aqueles que carregam o Brasil nas costas
não têm túmulos nem legendas;
seu sono não é velado,
seu nome ninguém conhece.

Hoje eles seguem a sina de uma sorte inglória...


(Prof. Eduardo de Oliveira)